terça-feira, 27 de novembro de 2007

CURRÍCULO, ESCOLA E COMUNIDADE: RELAÇÕES E POSSIBILIDAD

Se tomarmos a etimologia da palavra ( do latim curriculum), veremos que, literalmente, currículo significa pista de corrida1, um percurso a ser realizado.
Ao visualizarmos uma pista de corrida sem corredores, veremos que ela tem um começo, um fim e um certo contorno. Diferente é pensar a pista com corredores nela. As condições de cada um para fazer o percurso definido são diferentes. Alguns aceitam e acham fácil o percurso. Outros o acham difícil e podem percorrê-lo até um certo trecho, ou nem iniciar o percurso. Terceiros podem reinventar o percurso, torná-lo diferente. Uns percorrem mais rapidamente, outros mais lentamente. Enfim, as condições para cada um dos corredores são bem diversas, independentemente do percurso já definido.
No primeiro caso, quando a pista está vazia, o currículo é formal e estabelece antecipadamente os limites para o percurso dos corredores. Já no segundo, o currículo não é definido antecipadamente, mas é construído por aqueles que o percorrem, com as condições que têm para percorrê-lo. Esse segundo caso nos remete a pensar o currículo como processo, como historicidade, como movimento, como produção participada. Embora possamos projetar o seu fim, não podemos saber antecipadamente se ele será alcançado. O currículo é percurso de busca que deve ser sempre questionado e reavaliado. Para que e para quem serve mesmo esse currículo?
Com isso podemos aproximar o conceito de currículo ao conceito de experiência, cujo significado etimológico da palavra é: uma viagem, um percurso que atravessa a vida de quem a sustenta2. O currículo é produzido pela experiência.
Experiência que abrange a vivência imediata de situações individuais e/ou coletivas e a sua elaboração investigativa, isto é, a experiência se realiza quando na vivência lançamos mão de dispositivos de observação, escuta, registro, análise, interpretação, reflexão e crítica do que se vivencia.
A experiência, embora possa ser planejada, não pode ser previamente determinada. Assim, podemos perceber que ela traz sempre possibilidades diferentes do que pressupúnhamos ao planejarmos. Como possibilidades desconhecidas podem gerar instabilidade, insegurança, incerteza e risco, então elas nos colocam diante da necessidade de fazer escolhas para: 1) conservar o que existe e ao que estamos habituados, o que nos leva a querer controlar e transformar o desconhecido em algo que nos deixe seguros; 2) assumir a historicidade, a incerteza e o inacabamento3, pelo que o novo nos abre ao movimento de reconstrução do que já existe ou 3) a criação de outras condições para o futuro. Enfim, possibilidades geram tensão e nos forçam a tomar posição. Seja no sentido de nos fecharmos e evitá-las, seja no sentido de nos abrirmos para acolhê-las ou rejeitá-las.
Ao assumirmos o currículo como processo, como historicidade, como movimento, como busca, nos colocamos nas posições 2 e 3.
Agora, se por currículo entendermos os elementos presentes nas experiências individuais e coletivas que constituem o movimento pelo qual indivíduos e grupos sociais se tornam o que são na busca por ser mais, então, ele não se reduz a conceitos, fórmulas e fatos já produzidos e conhecidos noutras experiências, mas envolve também outras experiências possíveis, que produzem condições para outros conceitos e fatos.
Assumindo essa concepção de currículo, podemos pensar que existe um currículo escolar e um currículo extra-escolar4.
O currículo escolar seria a vivência de experiências sistematicamente planejadas, visando ao ensino e à aprendizagem de elementos culturais selecionados e institucionalmente tidos como relevantes para que as pessoas se tornem algo que essas experiências planejadas objetivam. Nesse sentido, na escola não se experimenta (nem se ensina e aprende) qualquer coisa, de qualquer maneira, para quaisquer finalidades. A escola tem uma cultura, tem uma vida, tem uma identidade e oferece condições para certas experiências.
Entretanto, ainda que as experiências vivenciadas na escola tenham as suas especificidades, elas não estão à parte de outras situações socioculturais que possibilitam outras experiências. Isso significa que as experiências escolares convivem com experiências não-escolares. O caso é que os mesmos sujeitos participam e aprendem a ser o que são tanto pelas experiências escolares como pelas experiências não-escolares, sob as condições de umas e de outras.
Os sujeitos, então, não podem ser tratados ora como sujeitos escolares (professores, diretores, funcionários, alunos e pais de alunos – comunidade escolar), ora como sujeitos não-escolares (cidadãos, trabalhadores, consumidores, contribuintes, etc. e futuros cidadãos, trabalhadores, consumidores, contribuintes, etc.), pois não deixam de ser o que são quando estão na escola ou fora dela: são humanos.
O que entra em jogo, então, para pensar o currículo escolar, diz respeito à vida de homens e mulheres na sua integridade, o que nos leva a pensar nas possibilidades de articulação entre escola e comunidade.
Se entendermos por currículo extra-escolar ou comunitário aquele que oferece condições de experiências diferentes das escolares num certo território geográfico (mais amplo – nacional, por exemplo – ou mais restrito – um bairro, um povoado), onde as pessoas se organizam política e socialmente, além de produzir saberes, bens, arte, etc., cuja organização e a produção se constroem dentro das condições de vida da comunidade, então perceberemos que as comunidades também têm suas próprias culturas, suas vidas, suas identidades, diferente das escolas.
Ao notarmos, entretanto, que a escola não está isolada da comunidade e que ambas não estão isoladas no mundo, notaremos que tanto as experiências escolares como as experiências comunitárias são afetadas pelo acesso a produtos de outras experiências que põem em movimento e transformam as suas vidas, as suas culturas, as suas identidades.
Referimo-nos aqui ao chamado processo de globalização da vida, que atinge escolas e comunidades especialmente através dos meios de comunicação de massa. Se por um lado os participantes das escolas e das comunidades têm acesso a informações de todos os tipos sobre tudo o que acontece no mundo, por outro, eles não encontram as condições para refletir e tomar posição sobre os impactos que essas informações têm sobre a vida nas escolas e nas comunidades.
O processo de globalização carrega junto da informação outros elementos impactantes que acionam processos de mudanças de comportamento que, por não serem adequadamente discutidos e avaliados, somam-se às tantas dificuldades em fazer da escola um espaço que, primeiramente, deva responder à compreensão das necessidades pessoais e locais além da preservação e respeito à cultura ali existente.
A globalização e a corrida por adequação aos “novos tempos”, sem a devida compreensão dos fenômenos, têm ocasionado fracassos da escola no que se refere ao tempo de ensino e aprendizagem e também à dificuldade de compreensão do seu papel como lócus de discussão e transformação de um modelo socioeconômico seletivo e excludente.
Isso nos coloca o desafio de pensar as condições de possibilidade para articular o currículo escolar com o currículo comunitário, pensando, então, numa escola que assuma esse papel.
Possibilidades e limites da articulação entre o que se vive na escola e o que se vive na comunidade
Embora escola e comunidade sejam diferentes quanto às condições de experiências que possibilitam aos sujeitos, não podemos encará-las como concorrentes e irreconciliáveis na busca da transformação na qualidade de vida das gentes. Pensamos que seja possível articular as experiências que constituem o currículo escolar com as experiências comunitárias desde que os objetivos projetados possam ser participativamente estabelecidos.
Nossa proposta é de uma política de ação curricular em que cada escola, com a comunidade local, e cada professor e professora, debatendo com seus pares e discutindo com seus alunos e alunas, desenvolvam experiências próprias para as questões vinculadas à realidade comunitária, articulando saberes escolares e saberes extra-escolares presentes na comunidade local pela sua própria produção ou por apropriação através do acesso a outras fontes. Entendemos que todo o movimento curricular tem de partir das necessidades das comunidades locais. Isso não significa sobrepor as necessidades comunitárias ao currículo escolar. Ao contrário, a escola precisa saber colocar-se na vida comunitária contribuindo para que a comunidade possa se conhecer através dela, bem como saber receber criticamente os elementos socioculturais que lhe chegam de fora. Ao mesmo tempo, a escola precisa saber identificar e valorizar as experiências comunitárias presentes no interior da própria escola. Não se trata, portanto, de consultar a comunidade, mas de escutá-la e conhecê-la quanto àquilo que afeta a sua identidade.
Considerar essas possibilidades implica compreender as necessidades e interesses da comunidade articulados à realidade e aos embates socioculturais nos diversos espaços e contextos: no local, regional, nacional e mundial, por compreendermos que o currículo carrega um vínculo inseparável com a cultura e com as relações de poder dentro da sociedade. Pois em cada um desses espaços e contextos, historicamente, vivenciamos várias questões, dentro e fora da escola, que comumente são silenciadas, porém estão presentes nas relações sociais: as relações de gênero, as questões raciais, as questões étnicas, a sexualidade, a dificuldade de compreensão do humano como parte do ambiente que o constitui e é por ele constituído, entre outros.
Não entendemos que exista uma fórmula definitiva, um modelo de organização curricular que dê conta disso. Nem é isso mais importante do que seguir os caminhos de fazer as opções de inserir no currículo os saberes da vida cotidiana, das necessidades da comunidade, do desvelamento dos embates, sabendo da responsabilidade que temos num currículo que leve à construção de uma identidade social.
Estes e outros problemas precisam ser pensados, assim como as possibilidades de transformações que exponham o sentido da escola, sua função e suas formas de contribuir com o desenvolvimento da comunidade na qual ela está inserida. Desenvolvimento para o qual também não acreditamos ter uma fórmula, um padrão para alcançá-lo, como muitos pensam, inspirados numa ideologia da competitividade de mercado.
Isto repercute diretamente na qualidade da escola pública que defendemos. Quando falamos em qualidade, estamos nos referindo à qualidade social. Neste sentido, podemos considerar a autonomia, a construção coletiva de suas ações, a sua posição como organizadora do processo de construção do conhecimento e das vivências sócio-históricas de cada indivíduo como papel fundamental da escola.
Assim, o currículo escolar não pode perder de vista o contexto sociocultural mais geral e o conhecimento historicamente construído e exigido na busca por tornar os sujeitos autônomos e ativos na transformação de suas vidas.
Nesse sentido, sugerimos três princípios para as ações curriculares escolares: que elas sejam investigativas, que tenham flexibilidade e que sejam teórico-práticas.
Quanto ao princípio investigativo, entendemos que cabe a cada escola lançar mão de dispositivos de observação e reflexão sistemáticas, próprios das experiências planejadas, para poder fazer uma leitura rigorosa e crítica do ambiente sociocultural da comunidade, estabelecendo, por meio desse processo, diálogo permanente com ela e, assim, intervindo e se fazendo presente explicitamente na vida comunitária.
Quanto à flexibilidade curricular, conforme a escola vá identificando os elementos presentes nas experiências socioculturais das comunidades, ela pode ir inserindo-os nas suas experiências para torná-los temas de estudo rigoroso e crítico, confrontando-os com os conhecimentos historicamente construídos e selecionados que cabe a ela socializar.
A flexibilidade curricular possibilita, de um lado, a inclusão na escola de conteúdos que se produzem cada vez mais rapidamente no contexto sociocultural e, de outro, possibilita a absorção, por meio da investigação, da necessidade de conhecimentos decorrentes da realidade comunitária.
Quanto às experiências serem teórico-práticas, queremos afirmar a importância da integração entre a investigação, o conhecimento da experiência comunitária, a vivência de novas experiências de inserção sociocultural, o conhecimento historicamente produzido e a intervenção social. A unidade teoria-prática, como princípio curricular, possibilita que nos aproximemos de uma educação escolar que tenha presente a integridade da vida de homens e mulheres.
Precisamos pensar também que o ensino desenvolvido na sala de aula deve se vincular ao contexto maior no qual a escola está imersa pois “(...) precisamos assegurar que os professores sejam capazes de tomar decisões numa base cotidiana que não limite, desnecessariamente, as chances de vida de seus alunos, que eles tomem decisões em seu trabalho com uma consciência maior sobre as conseqüências potenciais das diferentes escolhas que fazem. Enquanto as ações educacionais empreendidas pelos professores dentro das escolas não podem resolver, por si mesmas, os problemas da sociedade, elas podem contribuir no sentido de construir sociedades decentes e justas”5. Ainda que não queiramos, a educação é uma vivência multicultural. Numa sala de aula e em todo o espaço escolar interagem pessoas que trazem consigo suas experiências, vivências, valores, costumes, gostos, modos de falar e de vestir, enfim, maneiras de ver e conceber o mundo, que as diferenciam umas das outras.
Precisamos pensar na escola como um espaço democrático de diversidade e pluralidade, em que pelo diálogo entre as diferenças se possa construir um ambiente de produção coletiva de respeito à singularidade de cada um, de desenvolvimento da autonomia e, sobretudo, como espaço em que os sujeitos criassem seus próprios significados, ao invés de obtê-los formatados e predeterminados por outrem.
Para isso, é fundamental que os saberes da vida cotidiana estejam presentes na construção de cada aluno, dando sentido ao conhecimento e trazendo a discussão sobre o sentido deste na vida.
Pensar nessas questões exige de nós a coragem de rever o papel da escola frente à possibilidade de colaborar para a superação de modelos e fórmulas predefinidas que não dão conta da singularidade de cada comunidade e ainda contribuem para alienar, para distanciar a escola da realidade.
Com estes princípios para as experiências curriculares, por fim, queremos fazer notar a necessidade de a escola assumir-se como espaço possível de apropriação, de produção e reprodução, bem como de uso ético dos conhecimentos de que dispõe. Dos conhecimentos escolares e dos conhecimentos extra-escolares.
A escola, assim, não se limita à transmissão de conhecimentos, embora isso seja parte das suas experiências, nem tampouco se coloca numa posição de salvadora da comunidade. Ela é integrante e agente no contexto sociocultural da comunidade com a qual dialoga, colocando-se como diferente nas experiências que possibilita para produzir outras condições de vida diferentes das que aí estão.
A escola não é um espelho da comunidade. A escola não é um retrato da comunidade. A escola não é salvadora da comunidade. A escola participa da comunidade e é participada por ela.
Bibliografia Consultada
CORTELLA, Mário Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 4. ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2001. (Coleção Perspectiva; v. 5)
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa. 15. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
GADOTTI, Moacir; GUTIÉRREZ, Francisco (orgs.) Educação comunitária e economia popular. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
KOHAN, Walter Omar. Fundamentação à prática da filosofia na escola pública. In. ______; LEAL, Bernardina & RIBEIRO, Álvaro. (orgs.) Filosofia na Escola Pública. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 21-73.
RESENDE, Tânia de Freitas. “Escola tá bravo!”: provocações para um debate sobre as relações entre currículo escolar e currículo extra-escolar na “era da informação”. www.anped.org.br/25/taniafreitasrezendet12.rtf
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. (Questões de nossa época; v. 25)
VALE, Ana Maria do. Educação Popular na Escola Pública. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996. (Questões de nossa época; v. 8)
ZEICHNER, Kenneth. Formando professores reflexivos para uma educação centrada no aprendiz: possibilidades e contradições. In. _________ ESTEBAN, Maria T. e ZACCUR, Edwiges (orgs.). Professora-Pesquisadora: uma práxis em construção. Rio de Janeiro: DP& A, 2002.

NOTAS:
* Professor substituto do Departamento de Teoria e Fundamentos da Faculdade de Educação – UnB.
** Professora colaboradora da Universidade de Brasília.
1 SILVA, 1999.
2 KOHAN, 2000.
3 FREIRE, 2000.
4 SILVA; SACRISTÁN, apud RESENDE, 2002.
5 ZEICHNER, 2002, p.44.

http://www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2004/cp/tetxt3.htm

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