segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Cultura e participação nos anos 60

Heloísa Buarque de HolandaO texto de Heloísa Buarque de Holanda é o prólogo do livro 'Cultura e participação nos anos 60', da editora Brasiliense e datado de 1982. Nele se encontra uma boa descrição do panorama cultural brasileiro nos anos 60.
Cultura e participação nos anos 60Prólogo

...Houve um tempo, diz-nos Roberto Schwarz, em que o país estava irreconhecivelmente inteligente. "Política externa independente", "reformas estruturais", "libertação nacional", "combate ao imperialismo e ao latifúndio": um novo vocabulário - inegavelmente avançado para uma sociedade marcada pelo autoritarismo e pelo fantasma da imaturidade de seu povo - ganhava a cena, expressando um momento de intensa movimentação na vida brasileira.
Nas grandes cidades, o movimento operário que crescia desde os anos iniciais da década de 50 levava adiante um vigoroso processo de lutas, expelindo velhos pelegos do Estado Novo e fortalecendo seus mecanismos de reivindicação econômica e pressão política. Articulando-se em pactos sindicais,os trabalhadores urbanos pareciam dispostos a unificar suas forças. Novas organizações como a PUA e o CGT se afirmavam, provocando a desconfiança dos que temiam pelo rompimento dos limites institucionais da negociação salarial.
No campo, o movimento das Ligas Camponesas avançava,notadamente nos estados de Pernambuco e da Paraíba,alcançando repercussão por todo o país. Ampliava-se a sindicalização rural, e era criada em dezembro de 1963 a Confederação Nacional dos trabalhadores Agrícolas. O debate político nacional via brilhar um velho tabu: a Reforma Agrária.
Também a classe média urbana, ainda que dividida pelo temor da subversão e da instabilidade econômica, comparecia com amplos setores ao movimento social. Estudantes e intelectuais assumiam posições favoráveis às reformas estruturais, desenvolvendo uma intensa atividade de militância política e cultural. A União Nacional dos Estudantes (UNE), em plena legalidade, com trânsito livre e franco acesso às instâncias legítimas do poder, discutia calorosamente as questões nacionais e as perspectivas de transformação que mobilizavam o país.
Ligado à UNE, surgia no Rio de Janeiro, em 1961, o primeiro Centro Popular de Cultura, colocando na ordem do dia a definição de estratégias para a construção de uma cultura "nacional", popular e democrática". Atraindo jovens intelectuais,os CPCs - que aos poucos se organizavam por todo o país - tratavam de desenvolver uma atividade conscientizadora junto às classes populares. Um novo tipo de artista, "revolucionário e conseqüente", ganhava forma. Empolgados pelos ventos da efervescência política, os CPCs defendiam a opção pela "arte revolucionária", definida como instrumento a serviço da revolução social, que deveria abandonar a "ilusória liberdade abstratizada em telas e obras sem conteúdo", para voltar-se coletiva e didaticamente ao povo, restituindo-lhe "a consciência de si mesmo". Trabalhando o contato direto com as massas, de onde extraíam seu maior interesse e vigor, encenavam peças em portas de fábricas, favelas e sindicatos; publicavam cadernos de poesia vendidos a preços populares e iniciavam a realização pioneira de filmes autofinanciados. De dezembro de 1961 a dezembro de 1962 o CPC do Rio produziria as peças Eles não usam black-tie e A Vez da Recusa; o filme Cinco Vezes Favela, a coleção Cadernos do Povo e a série Violão de Rua. Promoveria ainda cursos de teatro, cinema, artes visuais e filosofia e a UNE-volante, uma excursão que por três meses percorreu todas as capitais do Brasil, para travar contato com bases universitárias, operárias e camponesas.
A organização de um amplo movimento cultural didático-conscientizador tomava forma em toda uma série de grupos e pequenas instituições que surgiam vinculadas a governos estaduais, prefeituras ougeradas pelo movimento estudantil. Em Pernambuco, com o apoio do governo de Miguel Arraes, o Movimento de Cultura Popular (MPC) forma núcleos de alfabetização em favelas e bairros pobres. Um novo método, criado por Paulo Freire, causava impacto. Contra as infantilizantes "cartilhas" tradicionais, procurava-se colocar a palavra política no comando do processo de aprendizado como forma de deflagrar a tomada de consciência da situação social vivida pelas populações analfabetas e marginalizadas.
No campo político, a presença no poder de forças nacionalistas filiadas à tradição de Vargas e, nesse sentido, sensíveis às demandas populares, favorecia a emergência das esquerdas, notadamente do Partido Comunista que, na semilegalidade, desempenhava um papel de crescente importância na articulação dos setores progressistas. Exercendo uma influência considerável no meio sindical, estudantil e intelectual, o PCB constituía-se numa peça estratégica do jogo de alianças do período Goulart. Sua proximidade em relação ao Estado e o acesso a alguns aparelhos de hegemonia permitiam que seu ideário da revolução "democrática e antiimperialista" circulasse abertamente no debate nacional.
Brasil, primeiros anos da década de 60: talvez em poucos momentos da nossa história o que poderíamos chamar de "forças progressistas" tivessem se visto tão próximas do poder político.
Fonte: Cultura e participação nos anos 60 - Heloísa Buarque de Holanda - São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, 6ª edição, pp. 8-11

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