domingo, 18 de novembro de 2007

CARTOGRAFIA NA ESCOLA

CARTOGRAFIA NA ESCOLA

No ensino de Geografia, bem como de outras áreas, as atuais formas produtivas exigem domínio de conhecimentos científicos e técnicos veiculados amplamente pelos meios de informação. O indivíduo que não domina as variadas formas de representação desses conhecimentos está impedido de pensar sobre aspectos do território que não estejam registrados em sua memória. Então, uma das funções da escola consiste em preparar o aluno para compreender a atual organização da sociedade, dando-lhe acesso às novas formas de representação da informação espacial: mapas, fotografias aéreas, imagens de satélites.Os mapas, durante muito tempo, foram considerados como o principal meio para o ensino de Geografia, porém, nos currículos oficiais, constavam poucos detalhes a esse respeito. Tais documentos mencionavam, principalmente, “localização, orientação e representação de dados”, como conhecimentos necessários para o estudo do espaço geográfico. Atualmente, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Geografia nos 2 primeiros ciclos do Ensino Fundamental (1a à 4a série) citam, entre os conteúdos a serem ensinados, a “linguagem cartográfica”. No primeiro ciclo, sugerem um início com a leitura e produção de “mapas simples” e indicam como um de seus objetivos o reconhecimento dos referenciais de “localização, orientação e distância”. Já no segundo ciclo, a representação do espaço deve avançar para “o aprofundamento da noção de proporção e escala” e para “os referenciais de localização, os pontos cardeais, as divisões e contornos políticos dos mapas, o sistema de cores e legendas”. No volume dos PCN de Geografia para o 3o e 4o ciclos (5a à 8a série) foi destinado o eixo 4, “A Cartografia como instrumento na aproximação dos lugares e do mundo”, para a abordagem da “linguagem cartográfica”.É a primeira vez que as recomendações curriculares oficiais tratam a Cartografia, de modo mais específico, como parte do programa de Geografia. Ainda que isso represente um avanço, várias questões devem ser consideradas para que a Cartografia se torne, de fato, um bom meio para se conhecer “os lugares e o mundo”.

O DESENHO E O MAPA
Entre as linguagens gráficas encontram-se o desenho e o mapa. O primeiro consiste em uma das manifestações mais antigas da humanidade, presente na cultura de praticamente todos os povos. Aparece espontaneamente nas atividades das crianças, desde bem pequenas. O segundo resulta de séculos de acumulação de conhecimentos e do desenvolvimento de técnicas cartográficas, o que exige um longo aprendizado para que se possa ler e entender os mapas. No entanto, quando pensamos em ambos como linguagens podemos estabelecer paralelo interessante entre eles, no ensino.

Há diversos estudos a respeito do desenho de crianças. Vamos nos ater, neste texto, a aspectos relativos à representação do espaço no desenho infantil. É conveniente, antes, lembrar as fases do desenho, pois são mencionadas em muitas publicações destinadas aos professores.

Uma das primeiras publicações a respeito do desenho de crianças foi realizada por Georges-Henri Luquet, em 1913, ao escrever a obra Os desenhos de uma criança, na qual apresenta os desenhos de sua filha. Em 1927, publicou a obra clássica O desenho infantil. Conforme visão vigente em sua época, Luquet considerou as produções gráficas das crianças tomando como referência o desenho do adulto, daí a interpretação dada por ele repousar na noção de realismo. Apesar de não aceitarem esse ponto de vista, estudos posteriores, principalmente em psicologia, continuaram a usar a terminologia de Luquet, o que lhes deu uma visão marcadamente evolutiva. A influência desses estudos no ensino pode levar os professores a verem, de modo inadequado, os desenhos das crianças como produções a serem melhoradas, ou até como incorretas.

Para as crianças, desenhar é brincar. “A criança desenha para se divertir”, disse Luquet. Os primeiros desenhos são feitos pelo prazer de riscar, de explorar as possibilidades do material (lápis de cor, giz de cera, caneta hidrográfica), para produzir efeitos interessantes no papel. É uma atividade lúdica, na qual os rabiscos não têm um significado determinado.
Quando a criança percebe que grafismos podem significar coisas, inaugura uma nova fase, que Luquet denominou incapacidade sintética, na qual ainda predominam rabiscos que são associados a objetos do mundo real, porém o mesmo rabisco, conforme o momento, pode representar diversos objetos.
As crianças vão desenvolvendo grafismos mais elaborados, diferenciando formas retilíneas e curvilíneas, porém não integram elementos no desenho para compor figuras ou cenas, os elementos permanecem apenas justapostos.
É comum ocorrer justaposição de desenho e imitação de escrita, o que atende à necessidade de registrar as explicações sobre o desenho, antes feitas oralmente. Podemos, talvez, considerar essas explicações como forma de estabelecer uma ligação entre os elementos.
Desenho e escrita evoluem por caminhos paralelos na construção do conhecimento pela criança. Quando a criança percebe que seus rabiscos servem para apresentar objetos e que é ela quem estabelece a relação entre o desenho e o objeto, inicia-se a construção de um amplo sistema gráfico, no qual engendram-se a escrita e outras formas gráficas, como os mapas.
Relembramos que “considerando o desenho dessa forma, pode-se ir além dos estágios do desenho infantil, e analisá-lo como expressão de uma linguagem, da qual a criança se apropria ao tornar visíveis suas impressões, socializando suas experiências” (Almeida, 200, p. 27).
Quanto à relação entre os elementos no espaço, os desenhos infantis apresentam, inicialmente, objetos isolados. Podem estar no mesmo campo visual, o que configura uma tentativa de estabelecer relação entre eles. O autor do desenho abaixo (figura 1) apresenta uma cena: uma casa e flores sobre o solo, acima aparecem nuvens e o Sol. A cena está estruturada no papel a partir de uma linha de base que estabelece relação espacial entre os objetos (inter-figural), que estão acima da mesma, ocupando posições à direita e à esquerda uns dos outros. Neste caso, as flores estão à direita da casa.


Figura 1: Casa com flores (André, 5 anos e 10 meses)


Estudando produções de diversas crianças Luquet chamou de realismo intelectual a fase em que não incluem apenas os objetos que podem ver, mas também aquilo que elas sabem que existe. Nesses desenhos, há ausência de elementos visíveis e acréscimo de elementos que não são visíveis; aparecem formas peculiares de perspectiva como rebatimentos, mistura de pontos de vista e justaposição espacial e temporal. São comuns desenhos com transparências, como o exemplo da figura 2, onde aparece a casa, com objetos, a mãe e a criança, o cachorro e o gato; do lado externo, o papai está caminhando para o trabalho.
Figura 2 – Casa desenhada por René. Fonte: Freinet (1977, p. 222).






Os rebatimentos dizem respeito à representação de elementos de um plano sobre outro, geralmente do plano vertical sobre o horizontal. Desenhar objetos em um mesmo campo visual, mas sob pontos de vista diferentes, é um recurso muito usado pelas crianças para apresentar no espaço gráfico (bidimensional) uma situação observada no espaço real (tridimensional). Na figura 3, a criança apresenta o prédio visto de frente, o pátio visto de cima e justaposto ao prédio. No pátio, desenhou crianças e outros objetos rebatidos.
Figura 3 – Prédio e jardim desenhados por Simonne Luquet. Fonte: Luquet (1969, p. 176).




A figura 4 mostra o desenho do quarteirão onde um menino mora. As ruas aparecem sob o ponto de vista de cima, todas as casas sob o ponto de vista frontal.
Figura 4 – Quarteirão onde mora Eric.


Fonte: Chombart de Lauwe. Espaces d’enfants. Ed. Delval. 1987. p. 60.

Apesar da mistura de pontos de vista, seu autor manteve as mesmas relações espaciais para todos os objetos: as casas estão alinhadas com a calçada e rebatidas sobre o plano das quadras, sem rotação, de maneira que algumas aparecem de lado ou de ponta-cabeça. Há proporção entre o tamanho das casas, apesar de estarem grandes em relação ao tamanho das quadras. Este desenho se aproxima de um mapa, o que caracteriza o realismo visual, quando há mais cuidado com as perspectivas, proporções, medidas e distâncias.
Nos exemplos, indicamos como o espaço aparece – na relação entre os elementos de um mesmo objeto e na relação entre objetos em um mesmo campo visual –, como reflexo das concepções da criança, não apenas sobre o real, mas sobre como apresentá-lo graficamente. Refletem, portanto, diferentes formas de linguagem gráfica, elaboradas a partir de conceitos que as crianças constroem a esse respeito. Queremos ir um pouco mais adiante, nesta tentativa de estabelecer paralelos entre o desenho infantil e os mapas.
Uma atividade muito comum entre as práticas escolares é o desenho do trajeto que a criança faz de sua casa à escola. Geralmente, as crianças desenham a casa em um canto do papel e a escola em outro, ligando-as com uma rua, na qual acrescentam alguns detalhes como outras edificações, árvores etc. A solicitação feita às crianças pode direcionar a resposta que elas apresentam no desenho. Muitas vezes, desenham poucos detalhes nesse trajeto por terem entendido que isso é suficiente para indicar o caminho percorrido. Nesta atividade, é possível estabelecer relações mais estreitas entre o desenho e o mapa.
Uma discussão com as crianças levanta questionamentos que as leva a perceber que os desenhos podem ter finalidades mais específicas: o desenho que você fez serve para indicar como chegar em sua casa? Um colega que não saiba onde você mora pode usar o desenho que você fez para ir da escola para sua casa?O caminho que você faz para vir de sua casa para a escola é o mesmo para ir da escola para sua casa?
Outras perguntas levam a pensar em atributos relacionados aos mapas, como:
Localização e distância: No desenho, que elementos estão mais próximos de sua casa (e longe da escola)? Que elementos estão a meia distância? E, que elementos estão mais próximos da escola (e longe de sua casa)?
Escala: Quais os maiores elementos que aparecem em seu desenho? (cinema, escola, igreja) Que elementos têm um tamanho médio? (casas, garagens) Que elementos são pequenos? (banca de jornal).
Ponto de vista: Como você faria para desenhar as casas, a escola, etc. vistos de cima, como se você estivesse vendo-os de um avião?
A partir de discussões desse tipo, as crianças percebem que poderiam incluir outros detalhes, que podem ser acrescentados no mesmo desenho, ou podem fazer um outro. Essas produções não devem ser descartadas, mas comparadas e guardadas para uso em outras aulas.
É importante ter sempre em mente que é desejável, nas práticas escolares, incluir diferentes linguagens. Assim, falar sobre o desenho (ou escrever) amplia as possibilidades de construção de conhecimento pela criança. Uma idéia de atividade, no contexto do que dissemos acima, pode ser pedir para que os alunos formem duplas e troquem os desenhos, observando a produção do colega digam (ou escrevam) o que entenderam, o que não está claro, o que acrescentariam, que comparação fazem com seu próprio desenho. É preciso sempre falar sobre o desenho, realizar outros registros, completar, discutir...
As práticas com desenhos não eliminam o uso de mapas, ou vice-versa. Quando os alunos usam mapas podem continuar a usar desenhos para registro de observações em trabalhos de campo, para apresentar uma área estudada ou como mapas mentais.
Referências bibliográficas
ALMEIDA. R.D. Do desenho ao mapa: iniciação cartográfica na escola. São Paulo: Editora Contexto. 2001.

FREINET, C. A aprendizagem do desenho. In: O Método natural. Trad. Franco de Souza e Teresa Balté. Lisboa, Editorial Estampa. vol. II. (Biblioteca de Ciências Pedagógicas, 13). 1977

LUQUET, G.H. O desenho infantil. Porto: Livraria Civilização – Editora. 1969.

Piaget & Inhelder. B. A representação do espaço na criança. Trad. Bernardina Machado de Albuquerque. Porto Alegre, Artes Médicas. 1993.
PILLAR, A D. Desenho e construção do conhecimento na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
PILLAR, A D. Desenho e escrita como sistemas de representação. Porto Alegre: Artes Médicas. 1996.

Nenhum comentário: