quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

FORMAÇÃO DO CONCEITO DE NÚMERO EM CRIANÇAS

Muitas pesquisas vêm sendo desenvolvidas a respeito da origem das habilidades
matemáticas. Estas pesquisas tornam-se relevantes para a reflexão dos professores na
medida em que os auxiliam a pensar como a criança desenvolve os conceitos
matemáticos.
A contagem é uma das primeiras formas que a criança tem de entrar em contado
com o sentido de número e isto ocorre espontaneamente em brincadeiras do cotidiano
infantil (Butteworth, 2005). O autor também nos apresenta os princípios presentes desde muito cedo e que governam as atividades de contagem das crianças, de acordo com
Gelman e Gallistel (1978), quais sejam:
• princípio um-um - designar um e somente um nome de número para cada item
a ser contado;
• princípio da ordem estável - sempre recitar os nomes dos números na mesma
ordem;
• princípio cardinal – o último nome de número pronunciado denota o total de
itens contados;
• princípio da abstração – qualquer tipo de entidade pode ser contada; e
• princípio da irrelevância da ordem – a ordem em que os objetos são
enumerados não importa.
Butterworth (2005) também apresenta a hipótese de Locke quanto à contagem,
partindo da construção do conceito de números e tendo como base o conceito do
número um (de acordo com o autor, disponível em nós sem a ajuda da cultura – p.7).
Fazendo contraponto entre esta hipótese e o princípio construtivista da noção de
quantidade, podemos acatar a premissa da mudança quantitativa, em construção de um
conjunto, a partir da adição ou da subtração de um em um.
O sistema decimal, utilizado por muitas línguas no mundo, é transmitido através
de gerações e sua memorização permite a ordenação de apenas algumas palavras-
número. A contagem um a um exige utilização da memória imediata; na língua
portuguesa, por exemplo, a criança necessita mais desse apoio enquanto procede à
nomeação das palavras-número de 1 até 15, já que não existe lógica nem regularidade
nos nomes desses números como suporte de escolha lingüística à criança. Para Gaspar
(2004: p.127), “a habilidade das crianças dizerem a seqüência correta das palavras
numéricas é fortemente influenciada pelas oportunidades que lhe são dadas de
aprender e praticar essa seqüência”. A autora concorda com o posicionamento quanto
ao período de aquisição da seqüência convencional das palavras numéricas nas crianças,
entre 2 e 6 ou 7 anos, “existindo uma grande variação dentro de cada grupo etário,
determinada por diferentes variáveis socioculturais”.
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No caso específico do diálogo ocorrido, para J., os numerais apresentados através
dos dedos das mãos têm relação direta entre quantidade e tempo. L. participou do
diálogo com a mesma percepção, avaliando como pouco ou muito tempo, de acordo
com o seu interesse. O mesmo comportamento foi apresentado por V. durante sua
intercessão, analisando a quantidade 3 como pouco tempo e sugerindo a J. que
solicitasse a quantidade 5. Staves (2002) apresenta esquematicamente a ocorrência dos
processos relativos ao conhecimento matemático pela criança. O autor designa como
“matemática individual” ao processo de exploração que a mesma realiza, à medida em
que trabalha cognitivamente as quantidades, espaço e tempo e que considera o mundo
com sentido imediato. Efetua-se, assim, o seu conhecimento matemático. Ao passar
para a fase da “matemática social”, a criança comunica-se e aprende a respeito de si e
do outro, além de experimentar as mudanças no meio, envolvendo as relações de
quantidade, espaço e tempo. Sua comunicação proporciona o conhecimento dos
conceitos matemáticos.
Devlin (2004) desenvolve a tese de que atributos mentais contribuem para a nossa
capacidade de lidar com matemática. Para o autor, os mais importantes são: senso
numérico, capacidade numérica, capacidade algorítmica, capacidade de lidar com
abstrações, senso de causa e efeito, capacidade de elaborar e seguir uma seqüência
causal de fatos ou eventos, capacidade de raciocínio lógico, capacidade de raciocínio
relacional, capacidade de raciocínio espacial. Devlin (op cit) ressalta que nascemos
com o senso numérico, isto é, reconhecemos a diferença de um grupo com dois ou três
elementos, bem como quando três elementos são mais que dois.
Pequenas quantidades até quatro ou cinco elementos podem ser distinguidas com
uma rápida olhada, de forma perceptual. Kamii (1991) aponta-nos que Piaget chamava
estes números pequenos de “números perceptuais”. Poderíamos relacionar os números
perceptuais com a numerosidade ou subitizing, ou seja, capacidade de determinar
quantidades de aproximadamente quatro elementos, sem o uso da contagem.
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Para Piaget, o número era construído sobre conceitos lógicos, tendo como pré-
requisitos: o raciocínio transitivo, a conservação do número e a habilidade de abstrair as
propriedades perceptivas de um conjunto sendo construído nas interações com o mundo.
Ao contrário do que Piaget propôs, Butterworth (2005) apresenta a seguinte
consideração: “crianças pequenas parecem responder a propriedades numéricas no seu
mundo visual, sem o beneficio da linguagem, raciocínio abstrato ou mais oportunidades
de manipular seu mundo”., p.5)
Nossa capacidade de lidar com matemática e pensar em objetos totalmente
abstratos, por exemplo, os números, requer construções mentais progressivamente mais
abstratas. Podemos considerar então, que não apenas fatores biológicos, mas também
influências culturais proporcionam a expansão da capacidade de lidar com matemática;
dependemos também de nossas habilidades individuais para aprender e usar ferramentas
matemáticas transmitidas pela cultura.
Os nomes dos números, a serem identificados e relacionados à quantidade de
objetos contados, dependem da lógica, dos sistemas culturais convencionais e das
diferentes situações. No que diz respeito às possibilidades para estudo quanto à natureza
da aquisição das habilidades aritméticas pela criança, Morin (2002) considera a
necessidade do conhecimento humano em posição inseparável do meio ambiente. Para o
que o autor chama de “o pleno uso da inteligência” (p.96), faz-se necessário o respeito
pela construção – única – dos conceitos em determinada cultura (vista como constituinte
da identidade individual e social). Situando a força do meio sobre o sujeito, Morin
(1986) também considerou que “... o conhecimento cerebral necessita, evidentemente,
dos estímulos do meio para se pôr em ação e se desenvolver. Mais profundamente,
necessita da presença organizacional do meio no interior da sua própria organização
[...] Assim, o inato é ao mesmo tempo um adquirido e um construído do processo
evolutivo cerebral.” (p.61).
As bases para a construção do conceito de numerosidade formam um conjunto de
axiomas fundamentais para todo o processo matemático na criança. A lógica é
invariável, mas a cultura apresenta convenções próprias, com a exigência das situações
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as quais a criança encontra-se inserida de forma diversa, constituindo, em conjunto, a
construção do conceito de numerosidade. Resultados de pesquisa sobre o raciocínio das
crianças, realizada por Nunes (2006), conduzem para a identificação dos princípios
lógico-matemáticos como base para a aprendizagem da matemática. Parece-nos, então,
que as transformações lógicas que ocorrem no raciocínio da criança têm relação direta
com o ambiente em que se encontra.
Gaspar (2004) afirma que: “as palavras numéricas têm diferentes significados
com os quais as crianças pequenas são confrontadas. Inicialmente, a criança não
distingue esses diferentes usos [...] e é através da utilização dessas palavras em
diferentes contextos [...] que lhes atribui significado” (p.121). Este posicionamento nos
mostra que o sistema numérico constitui-se como uma ferramenta cultural, ou seja,
aprendido pela criança. A autora também considera que “esta ‘lógica específica’, por
ser convencional, no sentido que foi culturalmente inventada e construída, tem também
de ser dominada pela criança” (p.125).
Butterworth (2005) contraria as afirmações apresentadas por Gaspar (2004) e
apresenta Locke (1690/1961) em “...os conceitos básicos de numerosidades estão
disponíveis para nós sem a ajuda da cultura, mas que a cultura pode ser útil em
algumas circunstâncias” (p.7).
Quanto ao fato de as crianças chegarem à escola já possuindo informalmente os
conceitos de número e de aritmética, existe grande variedade de ferramentas culturais
expostas à criança. Como exemplo, temos músicas infantis (um, dois, feijão com
arroz,...), brincadeiras (amarelinha, ...), exposições visuais ou auditivas, feitas pelos
adultos, utilização do dinheiro no dia-a-dia das famílias e tantas mais, todas
dependentes do meio em que a criança se encontra inserida. Butterworth (2005) afirma:
“O tempo para desenvolver um entendimento de conceitos matemáticos e princípios e
aplicar os mesmos de uma forma significativa, isto é provavelmente influenciado
fortemente pelas práticas educacionais as quais a criança é submetida” (p.10). O autor
procura enfatizar que o conceito de numerosidade prevê a capacidade do sujeito em
calcular os resultados aritméticos em momentos de mudanças quantitativas nos
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conjuntos. Por esta afirmação, apresenta como segunda alternativa de estudo a
compreensão de certos princípios lógicos como pré-requisitos para a noção das
habilidades aritméticas, a qual se encontra como integrante da lógica. Diz o autor:
“Nossa hipótese é que a construção de números está de mãos dadas com o
desenvolvimento da lógica e que um período pré-numérico corresponde a um nível pré-
lógico” (p.4). No texto, fica evidente a necessidade da interação sujeito – meio (é
importantíssima a manipulação pela criança com objetos, para estabelecer a
correspondência biunívoca, por exemplo).
4. CONCLUSÕES
A experiência social propicia a leitura do mundo (logicamente individual,
única). Cada um de nós se utiliza de estratégias cognitivas próprias para chegar à
compreensão lingüística de tudo que nos cerca. A exposição da criança em ambiente
favorável proporcionará a linguagem, transmitirá os saberes acumulado e apresentará os
critérios considerados como a verdade social local. A criança terá a grande chance de
receber inúmeras representações que lhe permitirão alcançar os conceitos generalizados
do mundo que a rodeia, transformá-los subjetivamente de acordo com o “método”
cognitivo próprio e, no momento propício, retorná-los à objetividade necessária aos
diálogos, para que estes lhe sejam satisfatórios.
Para que a criança alcance a noção de numerosidade, faz-se necessário construir
(organização/ reorganização cognitiva) a partir de capacidades básicas, como o
raciocínio para transferência de quantidades, de conservação da quantidade dos
componentes e sua mudança a partir da adição ou da subtração de elementos; cabe
salientar que a habilidade básica fundamental para a formação do conceito de número é
a ignorância, pelo sujeito, dos atributos perceptuais do conjunto (cor, forma, tamanho,
características particulares dos objetos).
Associado ao conceito de numerosidade, o desenvolvimento da contagem pela
criança se desenvolve como a grande abertura para a compreensão de quantidades. Esta
habilidade requer da criança que associe a nomeação dos números de acordo com a sua
ordem, a coordenação dos nomes dos números com a identificação dos objetos no
conjunto e a contagem única de cada objeto. Ao final da contagem, a criança deverá
perceber a correspondência com o total de objetos pertencentes ao conjunto. O processo
do desenvolvimento da contagem na criança estende-se pelo período dos dois aos seis
anos em média, para então adquirir esses “princípios” ou habilidades. De acordo com o
exposto por Butterworth (2005), o domínio dos “princípios” segue progressivamente,
ficando a primeira aquisição a cargo da “ordem estável” (ou seja, a seqüência da
nomeação sempre seguirá a mesma ordem); já a segunda aquisição pela criança refere-
se à correspondência nome – objeto (um a um), ficando para mais tarde o princípio da
cardinalidade, com a última nomeação do total de objetos do conjunto o que definirá a
sua quantidade. Esta habilidade auxiliará a criança na tarefa de resolução de problemas
aritméticos.
A fala das crianças nos transmite visivelmente o individualismo e a competição
como presentes em todos os momentos. Por trás do aspecto visível, encontra-se a
consciência de cada um, que lhes permite expressar parte do conhecimento individual
da noção de quantificação.

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