sábado, 1 de dezembro de 2007

A escrita como objeto da aprendizagem


A criação das representações escritas ocorreu de forma extra-escolar.Diferentes grupos sociais sentiram necessidade de registrar, por escrito, aspectos importantes de sua vida social, cultural, comercial. No decorrer dos séculos,instituição escola transformou a escrita de objeto social em objeto escolar,mas é importante frisar que a “escrita é importante na escola porque é importante fora da escola e não o inverso”. Dentro da escola, o que se vê como introduçãoao mundo da leitura e da escrita nem sempre está relacionado à leitura viva que impera nos diferentes espaços sociais. A mecanização dos atos de ler eescrever tem dificultado a formação de leitores e escritores.Se nos detivermos em alguns trechos da proposta Multieducação,veremos que nesta, não apenas se diz que a criança constrói conhecimentos de forma ativa, como também de forma interativa. Deve-se levar em contaque é na troca com outros sujeitos e consigo própria que cada criança, com sua experiência de vida, que é sempre singular, constrói conhecimentos.Isto muda o foco da questão. Se há interatividade, o papel do “outro” é fundamental. Isto significa que a mediação de um adulto, o professor, no caso específico da escola, joga um papel importante na construção do processo de leitura e escrita pelas crianças. É por meio dele e de colegas mais experientes que as crianças terão possibilidade de desenvolver novos conhecimentos. O professor deve não apenas organizar propostas de aprendizagem, para que os alunos avancem e construam hipóteses cada vezmais elaboradas, mas atuar firmemente intervindo para que a aprendizagem se efetue, considerando-se “que a aprendizagem é fundamental para o desenvolvimento” . No entanto, em relação à leitura e escrita, nem sempre aintervenção do professor é facilitadora já que há uma tendência a que se estipulem determinados passos metodológicos predeterminados como a seqüência de letras, palavras e orações a serem aprendidas.Quando as crianças aprendem a falar, o fazem sem que os adultos tenhama preocupação de lhes apresentar inicialmente certos fonemas da língua,porque são mais fáceis. Em contraposição ao ensino da linguagem escrita,os adultos simplesmente falam com as crianças em contextos funcionais, o que permite que elas construam significados. Na realidade, as crianças começam por aprender a falar palavras que tenham sentido para elas, em geral, carregadas de conotações afetivas. Com a mediação dos adultos que repetem corretamente suas falas, sem penalizá-las pelos “erros”, as crianças vão aumentando seu vocabulário, organizando as palavras em orações e simplesmente vão falando e falando cada vez com maior fluência. O que ocorre com a aprendizagem da linguagem oral é que as crianças são inseridasno mundo dos textos do cotidiano. Quanto à linguagem escrita, em geral, ascrianças antes mesmo que descubram para que serve a escrita são inseridas num mundo de textos fabricados para se ensinar a ler e a escrever.A comparação entre a aquisição dos dois processos, o da fala e o da leiturae escrita, não significa que aprender a ler e a escrever seja algo espontâneo e natural e que o professor deva esperar que a criança construa suas hipóteses e vá descobrindo todos os meandros da linguagem escrita sozinha, desde que esteja em contato com material gráfico. A intervenção organizada e planejada do professor é fundamental, assim como a mediação do grupo familiar e social em que a criança vive é crucial para a aquisição da linguagem oral. A criança fala porque falam com ela, isto é, ela tem contato desde cedo com a linguagem falada, ouvindo, repetindo.... Incidentalmente, a partir de experiências práticas,a fala se desenvolve. O primeiro passo, portanto, para aprender a falar é ocontato com a linguagem oral. O mesmo ocorre com a linguagem escrita.Segundo Emilia Ferreiro (1993), a construção do processo de leitura eescrita se dá a partir de diferentes hipóteses que vão sendo elaboradas pelas crianças à medida que vão tendo contato com material impresso,cabendo ao professor organizar as condições desta construção. Ferreiro evita o termo aprendizagem da leitura e da escrita por este termo ter, sob sua ótica, adquirido uma conotação empirista.Em momento algum, no entanto, ela nega a existência de um processo de aprendizagem. Aprende-se,portanto, a ler e a escrever e alguém coordena essa aprendizagem. É importante que se frise tal aspecto, porque sob a égide do Construtivismo,muitas vezes, os professores não interferem no processo de construção do conhecimento das crianças, acreditando que esta construção ocorrerá desde o momento em que a criança se defrontar com o objeto de conhecimento.Lamentavelmente depois de um ano na escola, muitos alunos apenas fazem garatujas, bolinhas, pauzinhos e são classificados construtivamente em alunos em fase pré-silábica.

A construção ou aprendizagem da leitura e escrita, segundo a mesmaautora, ocorre em diferentes etapas 3 :

*num primeiro momento as crianças conceituam a escrita como umconjunto de formas arbitrárias que dão nome aos desenhos;

*a seguir começam a elaborar condições de interpretabilidade, taiscomo as hipóteses da quantidade e da qualidade de letras, isto é, há ummínimo de letras que servem para escrever algo, assim como as palavrasse diferenciam pela posição e forma das letras;

*mais tarde há uma fonetização da escrita, quando a criança procura buscar uma relação entre o que se escreve e os aspectos sonoros da fala,subdividindo-se esta fonetização em três períodos (silábico, silábico-alfabéticoe alfabético);

*na fase alfabética, as crianças não dominam inicialmente a ortografia correta, embora seja lícito afirmar que saibam ler e escrever;

*deve-se atentar para o último ponto abordado, já que as crianças ao atingirem esse nível efetivamente sabem ler e escrever, devendo apenas ser orientadas quanto às diferenças e semelhanças sonoras e gráficas entre as palavras, tarefa que não se esgota durante o processo de alfabetização propriamente dito.

O mais importante aqui não é discutir quantas são as etapas nem como etiquetá-las e sim entender que o ato de ler e escrever envolve um processo que pode e deve ser acompanhado pelo professor, que deverá prover situações para que o processo como um todo seja concluído de modo satisfatório.

Identificar e rotular as crianças como pré-silábicas, silábicas ou qualquer outra denominação não significa “ser construtivista”. Esta dificuldade de colocar em prática o que Emilia Ferreiro pesquisou terminou, por no Brasil,criar uma febre construtivista, sem que mudanças efetivas ocorressem nas salas de aula. Na realidade, é tão perversa a classificação pura e simplesde alunos em fases, aceitando-se como natural que permaneçam um, dois,três, quatro anos na mesma fase, quanto no passado foi a classificação dos alunos em carentes sociais e culturais. Durante a vigência das idéias compensatórias, não se questionava o trabalho da escola, porque se naturalizavam as pseudo-carências dos alunos. Hoje, com base numa teoria que se alastrou fortemente entre os professores, de forma equivocada,também se acha natural a permanência indefinida dos alunos em determinado nível de construção do conhecimento. Esta aceitação, tendo como suporte bases científicas, termina por paralisar iniciativas e idéias que sempre surgiram espontaneamente nas salas de aula. A não-alfabetizaçãode contingentes imensos de alunos justifica-se, assim,teoricamente. A má interpretação de uma teoria tem tido resultados danosos na educação brasileira, como se pode constatar em recente avaliação do Sistema Nacional da Educação Básica (SAEB). Nesta pesquisa, os dados informam que cerca de 30% dos alunos, ao final da 4ª série do Ensino Fundamental, não sabem ler.
Importante, também, é compreender que Ferreiro investigou o processo individual das noções infantis sobre a escrita, independentemente das relações sociais e das situações de ensino. Entretanto, o modo como as crianças concebem a escrita precisa ser conhecido, mas deve-se levar em conta que aspectos cognitivos não podem ser isolados de aspectos sociais,culturais, afetivos, enfim, da teia de relações em que a criança vive.Outros teóricos, também citados na proposta Multieducação, comoVygotsky (1987), discutem a questão da aprendizagem da leitura e escrita.Segundo este autor, a aprendizagem de qualquer criança se dá muito antes desua entrada na escola, porém a aprendizagem escolar produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento da criança, já que é através de experiências de aprendizagens compartilhadas que se atua sobre a zona dedesenvolvimento proximal, o que significa que o que o aluno realiza hojecom a ajuda do professor ou de um colega mais experiente, realizará amanhã,sozinho. O autor defende, ainda, a tese de que a mediação sujeito e objeto doconhecimento não se reduz apenas a uma questão de estruturas cognitivas, de processos de assimilação e acomodação, mas também envolve a questão das interações, afetos, desejos, rejeições, relações sociais e situações de ensino.Como Ferreiro, Vygotsky entende que a linguagem escrita primeiramente constitui-se em um simbolismo de segunda ordem, relacionada diretamenteaos sons da fala, para se transformar pouco a pouco em um simbolismo de primeira ordem, em que a fala desaparece como elo intermediário.Segundo Vygotsky (1987), o gesto é o signo visual que contém a futura escrita da criança. Desde muito pequenas, ao realizarem rabiscos, ascrianças demonstram por gestos o que desejariam colocar em seus desenhos.Sendo assim, o desenho inicial da criança pode ser considerado mais comoum gesto do que como um desenho. À medida que aprende a falar, acriança fala e desenha aquilo que fala. Em experimentos em conjuntocom Luria, Vygotsky observou que crianças que não sabiam ler ou escrever,falavam e, enquanto falavam, “escreviam”, rabiscando traços e figuras, e“liam” aquilo que tinham “escrito”. Nesse caso, os símbolos criados pelas crianças nada mais eram do que símbolos de segunda ordem, criados para representar os símbolos falados das palavras. Seria então o caso de a criança entender que se pode desenhar a fala, devendo a escola providenciar para que ocorresse a transição entre desenhar coisas e desenhar a fala, sendo o segredo da linguagem escrita preparar tal transição.Os dois autores citados, cada um sob determinada ótica, procuram entender a história da construção da escrita pelas crianças. Se para Ferreiro existe um sujeito que interage com o objeto de conhecimento – no caso, a escrita – para apreendê-lo, para Vygotsky as crianças interagem com outros sujeitos – seus professores, seus colegas e com todos os afetos, sentimentose rejeições que se estabelecem nas relações interpessoais.

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